
Final dos anos 1980, eu acho. Meu pai ainda jogava bocha no Clube Alto dos Pinheiros, algo que provavelmente nem existe mais lá.
Disse-me ele que viu algo se mexendo no meio da pista. Os jogadores se aproximaram e viram que era um pássaro. O pássaro saltava pela pista mas não voava. Meu pai apanhou o bicho cuidadosamente.
- É uma saíra-sete-cores. Cortaram as penas das asas, por isso ele não voa.
Trouxe o bicho para casa e me incumbiu de cuidar da recuperação dele. Ficava numa gaiola de onde tirei o fundo, colocada sobre a terra da floreira do meu apartamento. A saíra comia bem diversas frutas, com alguma preferência por pepino, banana e tomate. Cheguei a cultivar drosófilas num vidro para acrescentar proteína à dieta dele.
Aos poucos a saíra foi ganhando mais confiança, seguramente porque as penas voltaram a crescer. Um dia a gaiola amanheceu vazia. Ele sempre pode sair da gaiola mas só saiu quando as asas voltaram a funcionar plenamente.
A saíra ficou comigo porque meu pai se preparava para uma de suas viagens anuais para congressos internacionais. Ele ia e apresentava trabalhos em todas as reuniões da International Union of Geological Sciences (IUGS), que são quadrianuais, e algumas outras. Sempre que havia uma reunião profissional ele aproveitava para visitar ex-alunos e fazer um pouco de turismo. Essas viagens anuais tomavam em torno de um mês, pouco mais. Coube a mim cuidar da saíra por esse motivo.
A saíra não foi, no entanto, o único animal selvagem que meu pai resgatou. Lembro de alguns. Um bebê preguiça, por exemplo, foi transportado abraçado a uma almofada. Meu pai, revoltado, explicou que pessoas más mataram a mãe preguiça por motivo nenhum. Não lembro para quem o bebê foi levado.
Além de defensor de políticas de conservação, meu pai se opunha a manter animais em cativeiro. Na casa da praia, passava horas observando os pássaros com binóculo e desenhando o que via.
Anos depois de todos estes acontecimentos, em 2016, aluguei um quarto numa pequena cidade do Kansas. A dona era uma acumuladora de objetos e animais (“hoarder”). Era também trumpista, evangélica, tinha casamentos em série, e diagnósticos falsos para receber benefícios.
A casa tinha um cheiro pungente de amônia e podridão. Havia mais de 40 gaiolas com pássaros tropicais. Na sala, uma arara amazônica.
Saí logo de lá e hoje moro em Oklahoma City. Quando eu fui denunciar a hoarder para o município, a família se mudou de lá.
Nunca contei para meu pai sobre essa casa absurda. Acho que ele ficaria horrorizado.
Meu pai construiu os valores e sistema ético dele meio que sozinho, em grande parte em oposição aos de seus pais. Eu tive o privilégio de herdar os meus. A evidência é que a história da saíra é a primeira coisa que me vem à cabeça se vejo maltratos a pássaros.